20111123

(... Klaus Vianna ...)



Além disso, existem diversos pontos em nosso corpo que são verdadeiros centros nervosos irradiadores de energia, associados às emoções: o queixo, a região da traqueia, o esterno, a crista do ilíaco, a região do púbis, a coxofemoral.


Esses pontos, quando bloqueados, acumulam tensão, e em torno deles vai se formando uma verdadeira couraça muscular. O equilíbrio dessas tensões - entendido como a tonicidade ideal dos músculos — permite também o equilíbrio das emoções que derivam de cada um desses pontos.

Há uma diferença muito grande, por exemplo, entre a emoção expressa através do esterno — que atua mais no sentido da projeção — e a emoção que flui da região dos quadris. Esses pontos ou articulações não atuam apenas como dobradiças do corpo, mas também como marcos divisores das mais diferentes emoções. De certa forma, a cada grupo muscular e articular corresponde determinada emoção, e, dependendo da emoção que se queira transmitir, deve-se privilegiar o trabalho com esse ou aquele grupo muscular, essa ou aquela articulação.

Se estamos construindo um personagem cuja característica principal seja o medo, por exemplo, o centro é a parte mais ligada a essa emoção. Alguém com a sensação de medo tende a se fechar, arqueando os ombros e apoiando-se nas costas. Quando os espaços articulares são satisfatoriamente preservados, o jogo de emoções associadas a esses pontos pode ser plenamente sentido.

Quando iniciamos um trabalho corporal da maneira como proponho, esteja ele voltado para a dança, o teatro ou qualquer outra atividade, a primeira necessidade que se impõe é a derrubada da parede que separa a sala de aula, onde exercitamos nosso corpo, do mundo exterior, onde vivemos nossa vida cotidiana. Não podemos nos esquecer de que o corpo que queremos exercitar é o mesmo com o qual nos acostumamos a correr, brincar, amar ou sofrer. Quanto mais levarmos em conta essa dimensão existencial revelada por meio do nosso corpo, quanto mais considerarmos as dúvidas e os questionamentos que nascem na relação com o mundo exterior, mais proveitoso poderá vir a ser o trabalho realizado e tanto mais rico o resultado obtido.

Por outro lado, a relação professor-aluno não deve ser muito diferente das relações que mantemos com as pessoas em nossa vida diária. É muito comum, pelo menos nos estágios iniciais, a tendência do aluno a projetar no professor sua necessidade de um ponto de referência externo, uma figura destinada a absorver todo gênero de carências.

Mas, quando essa transferência ocorre e é detectada pelo professor, este deverá encontrar um meio de permitir que o aluno se dê conta do fato, pois assim poderá ajustar-se ao trabalho e a si mesmo. A relação do tipo professor-guru-onipotente e aluno-fiel-subserviente pode ser muito prejudicial ao trabalho que se está desenvolvendo, assim como à própria vida.

Ao longo desse processo, é fundamental considerar a relação mundo—eu, verdadeira origem e motor do movimento e da própria dança, pois é da dinâmica desse relacionamento que emerge a singularidade que faz de cada pessoa um ser único e diferenciado. Por meio da vivência da relação mundo—eu, o eu interno desabrocha a partir do amadurecimento do eu social, que nada mais é do que a forma de nos relacionarmos com o mundo exterior.

A descoberta do eu interno, de um ser único, individual e criativo, é indispensável ao exercício da dança, se quisermos que ela se torne uma forma de expressão da comunidade humana. Desde o nascimento somos submetidos a uma série de condicionamentos sociais, antes mesmo de vivermos os processos de educação formal —, o que acaba resultando em procedimentos mecânicos e repetitivos, dos quais não temos percepção ou consciência.

Se isso, de um lado, facilita a nossa existência cotidiana, de outro, afasta e dificulta o processo de autoconhecimento. Em outras palavras, a memória robotizada pode produzir formas já catalogadas e conhecidas, mas dificilmente criar movimentos novos e ricos em expressão.

E a dança não significa reproduzir apenas formas. A forma pura é fria, estática, repetitiva. Dançar é muito mais aventurar-se na grande viagem do movimento que é a vida. Nesse sentido, a forma pode comparar-se à morte e o movimento, à vida.

Os movimentos circulares são os mais relaxantes para o corpo. De certa forma, eles liberam as articulações e os grupos musculares, permitindo o equilíbrio ósseo e muscular, ao con¬trário da linha reta, que às vezes bloqueia e impede a exploração das mais diversas possibilidades de movimento.

Essa linha curva, ou redonda, vai gerando anéis musculares por todo o corpo. Estes, por sua vez, se não evoluírem para uma espiral, provocarão a tensão. Assim, o movimento circular deverá procurar sempre o caminho da espiral, de uma curva aberta, pois do contrário giraremos, mas seremos incapazes de sair do lugar.

De qualquer forma, técnica não é estética. Apesar de ter um sentido utilitário na dança, a essência da técnica constitui apenas uma forma de organizar e difundir um determinado conhecimento a respeito do próprio corpo e das possibilidades de movimento.

Essa técnica, portanto, deve ser cristalina, transparente, pois de que adianta fazermos uma série de movimentos formalmente considerados bonitos se isso não traduz ou expressa nada, se não há objetivo ou intenção naquilo que fazemos e se, acima de tudo, não contribui para nosso autoconhecimento?

Há uma mentalidade predominante que concebe a técnica como um fim em si, quando na verdade ela deve ser mais um meio eficaz e em plena sintonia com os fins que proponho atingir. E a técnica eficaz talvez seja aquela que torna possível extrapolar todos os falsos e repetitivos conceitos de beleza, que permite criar ou revelar a identidade entre a dança e o dançarino, entre quem dança e o que está sendo dançado.

Podemos dizer que o que faz a beleza de um movimento é a clareza, a objetividade. Quando o movimento é limpo, consegue expressar aquilo que busca expressar e, como consequência natural de sua verdade, ganha em beleza e emoção. Precisamente aí reside seu valor estético.

É muito difícil manifestar um sentimento, uma emoção, uma intenção, se me oriento mais por formas condicionadas e conceitos preestabelecidos do que pela verdade do meu gesto. O que confere autenticidade e expressão a um dado movimento coreográfico é precisamente o poder que ele tem de traduzir certas emoções, sentimentos ou sensações, de tal forma que seria impossível traduzi-los de outra forma ou por meio do recurso de outra linguagem. Ou seja: o que é dançado é dançado por alguém que vive intensamente aquele movimento, aquele gesto, e, por isso, consegue expressá-lo plenamente.

Quando soltamos nosso corpo — o que não significa despencar — , o movimento que executamos flui livremente, obedecendo a uma forma de organização natural, a uma linguagem gestual que, de algum modo, já constitui parte de nossa dinâmica e está em harmonia com nossa capacidade anatômica e funcional, com nossa capacidade de movimento.

Em contrapartida, as situações sociais e culturais influenciam muito o comportamento gestual e postural que adotamos. Por exemplo, as sociedades polinésia, havaiana e taitiana, célebres pela liberdade de costumes, produzem naqueles povos posturas e movimentos flexíveis e redondos, denotando o grau de liberdade que aquelas pessoas desfrutam. Já uma sociedade guerreira, de caçadores, como a de certas tribos africanas, produz posturas e movimentos fortes, intensos, de grande concentração e conteúdo rítmico.

As técnicas excessivamente formais, que desconsideram esses fatos, quase sempre caem no vazio, no limite dos gestos artificiais e desprovidos de emoção. Nesse caso, os movimentos são confusos e pouco objetivos, e o que se apresenta como emoção são apenas máscaras, artifícios tecnicamente produzidos, sem qualquer relação com um impulso vital. O que essas técnicas ignoram é a própria vitalidade do movimento.

Obviamente, nosso corpo necessita de certos códigos para que possa se exprimir. Entretanto, esses códigos devem brotar do movimento que executamos a partir de nossa própria linguagem gestual, daquela linguagem que empregamos no dia-a-dia.Tendo consciência dessa linguagem, posso me comunicar por intermédio dela, posso dançar com ela.

Se não conseguimos estabelecer um contato consciente com o nosso eu interior, contato que normalmente se perde a partir da infância, ficamos impotentes e incapazes de criar um verdadeiro diálogo, seja ele qual for. Em linguagem corporal, isso se traduzirá em gestos, posturas e atitudes medrosos, limitados, inseguros, revelando a maneira como nos projetamos no mundo.

O fato de cada pessoa ser, em síntese, o próprio mundo, um microcosmo, permite que ela encontre respostas para suas dúvidas, paixões e ansiedades quando mergulha com coragem e técnica em seu universo interior. Talvez seja isso que faz que grandes atores representem um mesmo personagem centenas de vezes, sempre de maneiras distintas. Ou seja: buscando em si a verdade daquele personagem, o ator pode conseguir a cada nova apresentação explorar aspectos novos e inéditos do ser fictício — mas ao mesmo tempo real — que encarna.

O mesmo processo aplica-se à construção dos tipos ou personagens do bale clássico: quando essa técnica é devidamente aplicada, as Giselles, Odetes e Copélias deixam de ser personagens acadêmicos para tornarem-se verdadeiros clássicos; deixam de ser estereótipos de personalidades humanas para atingir a dimensão de autênticos arquétipos da humanidade.

No teatro ou na dança, o ator e o bailarino desencadeiam, a partir de sua individualidade, um rico processo criativo, pelo qual os elementos técnicos adquiridos podem ser codificados e, em seguida, representados. A técnica cumpre aqui a tarefa de dar corpo e alma a cada tipo ou personagem que se queira representar. Este, para mim, deve ser o processo de criação capaz de produzir obras e manifestações verdadeiramente artísticas.

No terreno da arte, a obra só toma corpo na relação que o artista mantém com a realidade que o cerca, mesmo que essa relação seja atravessada pelas mediações mais sutis. O artista, como criador, mais do que ninguém necessita aguçar sua percepção do real, e o momento da criação pressupõe e ao mesmo tempo encerra o processo de autoconhecimento.

O corpo humano é uma síntese do universo. Não sou eu quem diz, nem tal coisa foi dita apenas no século xx. Mas sabe¬mos que no corpo todas as relações, todas as proporções universais estão de alguma forma contidas - e é precisamente essa infinidade de atributos, funções e possibilidades que faz do corpo um verdadeiro mistério.

Apesar de todo o conhecimento acumulado a seu respeito, o corpo humano ainda não foi completamente explorado e talvez nunca cheguemos a conclusões definitivas sobre suas potencialidades. De qualquer forma, sua existência revela a presença de algo cuja dimensão transcende a própria materialidade: aquilo que comumente chamamos de energia vital.

Atualmente, em diversos países, desenvolve-se um amplo trabalho no campo da bioenergética, que permite sustentar a ideia de que a energia é a base da própria vida. Como potencializar e canalizar essa energia em um sentido criativo é o que nos interessa mais de perto, tanto no domínio da arte quanto da própria vida.

Mesmo relativizando a onipotência que se costuma atribuir ao homem como ser racional, é impossível negar sua capacidade consciente de lançar mão dessa energia, modificando-se ou intervindo em processos naturais. A própria atividade biológica, caracterizada por um contínuo movimento, é a usina que produz essa energia vital e gera um fluxo energético que se processa por todas as áreas do corpo humano.

Em algumas dessas áreas, esse fluxo é bem mais visível, como nas mãos e nos pés, regiões que se comunicam com o mundo externo de forma muito mais intensa. Além dessas regiões, o plexo solar, o esterno, a garganta e a virilha são grandes centros nervosos nos quais também se realiza um intenso fluxo energético.

Por meio da energia vital produzida por minha atividade biológica relaciono-me com o mundo, comigo mesmo e com tudo que me cerca. Minha energia vital cresce na mesma medida que o meu trabalho corporal torna-se consciente. Quanto mais presente em mini mesmo eu estiver, quanto mais atento a cada gesto ou deslocamento, maior poderá ser a minha produção e concentração de energia vital.

Movido por essa necessidade fundamental — a consciência de mim — é que procuro, com o meu trabalho, proporcionar às pessoas uma consciência corporal baseada na percepção dos espaços internos do próprio corpo. Nesses espaços, que em geral correspondem às diversas articulações, localizam-se fluxos energéticos e inserem-se os vários grupos musculares.

Ainda é bom ressaltar que a preservação do espaço corporal atua para garantir uma boa relação de equilíbrio, pois quando se subtrai o espaço corporal, surge a tendência à diminuição da capacidade de equilíbrio e quando se consegue preservar e ampliar esse espaço, o equilíbrio alcança um ponto satisfatório.

Para entender essa relação, mesmo sabendo que o corpo constitui uma totalidade indivisível, podemos exemplificar dizendo que existem dois tipos de equilíbrio (ou desequilíbrio) que se influenciam mutuamente: o interno e o externo. Um dado equilíbrio (ou desequilíbrio) externo gera um dado equilíbrio (ou desequilíbrio) interno. E vice-versa.

Do mesmo modo, existe um espaço interior, emocional, mental, psicológico, e um espaço exterior, que é onde se manifesta a dinâmica do corpo. A sensação de equilíbrio corresponde ao momento ou aos momentos em que descobrimos uma maneira harmônica de utilização do espaço, em que equilíbrio interior e exterior já não se diferenciam mais.

O homem se insere no universo e atua como síntese desse universo de tal maneira que, ao me conhecer e conhecer a humanidade, estou desvendando o próprio universo. Essa relação pode ser esmiuçada até o nível celular, como parte de um processo ba¬seado na dialética da própria natureza, que conforma e dispõe as coisas e os homens independentemente de qualquer vontade.

Como homens e seres naturais, deveríamos considerar e procurar respeitar as leis da natureza também inerentes a nós.

O fato de sermos indivíduos culturais não elimina essa verdade, apesar de nos afastar cada vez mais dela. O que proponho é a retomada das leis naturais que regem toda existência, exatamente por meio do trabalho consciente.

Klauss Vianna, A Dança, páginas 110 até118

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