20080915

O conteúdo do Texto dos Yoga Sutras ajuda ou atrapalha?

O texto que segue abaixo é a minha prova final do primeiro semestre de Filosofia de 2008 do Curso de Formação de Professores de Iyengar do Yoga Dham.
A proposta foi de escolher 4 tópicos (assinalados no texto em itálico) entre 10 para responder uma única questão:


Patanjali traz entendimento e orientações para a prática do Yoga?

Sim.

Abhyâsa (“estudo ou prática constante e determinado”, Iyengar, A Árvore da vida) pode ser comparado ao motor ou ao impulso que pode nos levar ao estado de Yoga.

Pelo estudo e pela prática contínuos e resolutos, é possível refinar o discernimento, que é “o fio da navalha do intelecto, que separa o verdadeiro do falso, a realidade da irrealidade”, que permite fazer “comparações significativas” e desenvolver “a análise perspicaz, que leva ao entendimento correto” capaz de discriminar as informações retidas na memória (smriti), onde as experiências do passado repousam a espera de lembrança e as experiências do presente se acumulam. “No começo, é um processo de tentativa e erro. Mais tarde, aprendemos a evitar o erro.” (Iyengar, Luz na Vida, pág. 199)

Quando aprendemos a direcionar os impulsos e a evitar o erro, a memória começa a deixar de ser um entrave e passa a ser uma ferramenta para alcançar o estado de Yoga. “(O) processo de avaliar os próprios instintos, pensamentos e atos é a prática da renúncia (vayrâgya).” (Iyengar, A árvore do Yoga pág.105).

A memória no presente ou a atenção constante ou a capacidade de concentração, que também é chamada smriti é uma das qualidades que nos leva a afiar a inteligência, discernindo o conteúdo das experiências registradas pela mente (memória ‘bruta’) e modificando-a em sabedoria (memória ‘educada’), que nos ajuda a manter o conhecimento correto. (Yoga Sutra 1:20 ‘shraddha virya smriti samadhi prajna purvakah itaresham’ = [O êxtase supraconsciente] dos outros [yogins cujo caminho é o especificado no aforismo 1.18] é precedido pela fé, pela diligência, pela atenção, pelo êxtase [consciente] e pela sabedoria. Comentário de Georg Feuerstein)

Com a prática de abhyâsa e vayrâgya construímos parte do conhecimento correto (pramana) atualizado através dos resultados obtidos pelo estudo e pela prática pessoal e pela dedução; uma outra parte é obtida através do testemunho de pessoas sábias e confiáveis.

O conhecimento correto é mantido vivificado, refrescado desde que seja sempre re-examinado, experimentado, estudado e refinado e que nele não sobrem experiências supérfluas retidas. Conforme vamos filtrando e minimizando o conteúdo do intelecto fruto das experiências registradas e estimulantes da mente, nos aproximamos do estado de Yoga.


Para ser sincera, Patanjali esclarece muito.

O maior obstáculo é ter pouco entendimento do Sânscrito, condição que se pode modificar de imediato recorrendo aos comentários sobre os Yoga Sutra de pessoas confiáveis (uma das formas de pramana).

Minha impressão atual como professora de Hatha Yoga é que sou uma estudante que estuda através das percepções do meu corpo e da observação dos corpos e dos relatos de meus alunos.

Tive a felicidade de experimentar abhyâsa e vayrâgya logo no início de minha prática pessoal.

Eu tinha muita vontade de experimentar praticar e através de abhyâsa, pude construir um repertório de sensações que depois demonstrou ser pramana e que me orientou no sentido de um entendimento pacífico entre meu corpo e minha mente (chitta), que viviam em discórdia antes que eu tivesse contato com o livro ‘Luz da Yoga’, Editora Pensamento e os textos do Yoga clássico. Fui prudente em agregar os conhecimentos obtidos através da prática e do estudo, o que também é, segundo Iyengar uma forma de vayrâgya.

Pude perceber quantos comportamentos, atos e pensamentos desnecessários (smriti, como memória que tudo retém e vira fonte de estímulos que perturbem chitta, memória depósito passiva) consumiam minha energia, e abandoná-los (vayrâgya) pareceu natural. Experimentei antes de estudar nos Yoga Sutra que a prática e o desapego são os meios para acalmar os movimentos da consciência, conforme o sutra 1:12 (‘abhyasa vairagyabhyam tat nirodhah’ = A prática e o desapego são os meios para acalmar os movimentos da consciência. Comentário de Iyengar)

E como sentia bem estar profundo praticando Yoga, minha prática de asanas foi se tornando mais extensa e eu abri espaço em outros momentos do meu dia para praticar e estudar. Criei meu círculo virtuoso: quanto mais abhyâsa, menos perturbação, conforme assegura o sutra 1:14 (‘sah tu dirgha kala nairantaira satkara asevitah dridha bhumih’ = A prática longa, initerrupta e alerta é a fundação firme para a contenção das flutuações. Comentário de Iyengar).

Procuro incentivar meus alunos que pratiquem sempre que puderem, e que se observem com qualidade de atenção, e que comentem suas impressões; procuro incentivar que estudem os textos clássicos e os textos de Iyengar; procuro situar algum comentário a respeito do Yoga Sutra, de Patanjali, dos livros de Iyengar em alguma parte das aulas e dedico cerca de 1/3 de uma aula por mês para falar a respeito dos 8 estágios do Yoga que Patanjali propôs. Proponho que se observem sem julgo, e que guardem na memória apenas o que for pessoalmente consistente e que estiver no presente relacionado com os textos comentados em aula e com a prática de cada um.

É importante perceber como uma dificuldade de um deles em compreender ou realizar um âsana, por exemplo, se transforma em abhyâsa para mim, para auxiliá-los no processo de praticar; bem como é interessante ouvi-los relatar de como estão deixando de lado gestos e/ou pensamentos desnecessários, que no meu entendimento é em parte de desapego (vayrâgya) e em parte a manifestação de uma memória (smriti) mais aguçada, que está sendo ‘educada’.

Vayrâgya também envolve a possibilidade de rever pontos de vista, como Iyengar fez ao afirmar que pranayama era algo para se fazer e tempos depois, corrigiu sua observação dizendo que pranayama é algo que pode acontecer ao nos disponibilizarmos para isso.

Dessa maneira, Iyengar modificou um conceito que deixou de ser correto, atualizando-o segundo a maturidade de sua abhyâsa. Nos deu exemplo de vayrâgya, pramana e smriti (no sentido de memória seletiva-ativa-no-presente).

Acredito que não praticar ou estudar descaracteriza totalmente o que conhecemos como Yoga: o professor perde seu frescor, sua firmeza e transforma os alunos tem teóricos mofados ou em praticantes de alongamento e alinhamento ósseo, sem contar que um(a) professor(a) educa principalmente pelo seu exemplo pessoal.

A falta do cultivo do conhecimento correto tem proporcionado pessoas que praticam Yoga de modo equivocado, como o fato observável de quem confunde vayrâgya com privação, ou como quem declama os textos sagrados sem envolvimento pessoal.

Se não filtramos os conteúdos da memória ‘bruta’, se não notamos que estes conteúdos retidos sem discriminação são em parte a fonte dos estímulos que nos tornam fragmentados em muitas direções buscando satisfação após outra, como vamos coordenar, controlar as flutuações da mente?

Na minha atual compreensão, abhyâsa, vayrâgya, pramana e smriti (no sentido de estar atento, memória no presente) formam um círculo virtuoso que, se observados constantemente e utilizados com ponderação, nos conduzem ao estado de Yoga.


Referências e Bibliografia Consultada

FEUERSTEIN, George. A tradição do Yoga. 1ª Edição São Paulo: Pensamento, 2006.

IYENGAR, B. K. S. A Árvore do Yoga. São Paulo: Globo, 2001.
IYENGAR, B. K. S. Luz na vida. São Paulo: Summus, 2007.

IYENGAR, B. K. S. Luz nos Yoga Sutras de Patanjali. Apostila cedida pela profª Che.

JNANESHVARA BHARATI, Swami.
Disponível em :.
Acesso em 09 de junho 2008.

KUPFER, Pedro. O Yoga Sutra de Patanjali: aforismos I:7. Cadernos de Yoga. n.05, p.91-93. verão/2005.

KUPFER, Pedro. O Yoga Sutra de Patanjali: aforismos I:10 e I:11. Cadernos de Yoga. n.08, p.71-75. primavera/2006.

KUPFER, Pedro. O Yoga Sutra de Patanjali: aforismos I:12 a I:14. Cadernos de Yoga. n.09, p.62-70. verão/2006.

KUPFER, Pedro. O Yoga Sutra de Patanjali: aforismos I:15 e I:16. Cadernos de Yoga. n.10, p.72-77. outono/2006.

KUPFER, Pedro. O Yoga Sutra de Patanjali: aforismos I:19 e I:20. Cadernos de Yoga. n.14, p.58-63. outono/2007.

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