20090312

Dançarino Cósmico


A dança é uma ancestral forma de magia. O dançarino ganha novas e maiores dimensões, toma-se um ser dotado de poderes sobrenaturais. Sua personalidade se transforma. Como a ioga[sic], a dança leva ao transe, ao êxtase, à vivência do divino, à compreensão da própria e secreta natureza individual e, por fim, à fusão com a essência divina. Por isso, na Índia, a conviveu lado a lado com as severas práticas ascéticas dos eremitas - jejum, exercícios respiratórios, introversão absoluta. Para exercer a magia, para lançar encantamento sobre outrem, é preciso que o indivíduo em primeiro lugar encante a si mesmo. Coisa que pode ser efetuada tanto através da dança como da prece, do jejum e da meditação. O que explica ser Śiva, portanto, não só o arquiiogue[sic] dos deuses, mas também, necessariamente, o senhor da dança.

O propósito da dança pantomímica é transformar o dançarino no demônio, deus ou entidade telúrica que ele personificar. A dança de guerra, por exemplo, converte os homens que a executam em guerreiros; desperta-lhes as virtudes bélicas, transformando-os em heróis destemidos. A dança-pantomima da caçada antecipa e assegura, através da magia, o êxito da caça, convertendo os participantes em infalíveis caçadores. Para despertar de sua letargia os poderes naturais referentes à fecundidade, os dançarinos imitam, com sua mímica, os deuses da vegetação, da sexualidade e da chuva.

A dança é um ato criador. Suscita uma situação nova e desperta no dançarino uma personalidade nova e superior. Possui uma função cosmogônica, isto é, desperta as energias latentes para que confiram forma ao universo. Numa escala universal, Śiva é o Dançarino Cósmico; em sua manifestação dançante (nritya- mūrti) incorpora em si mesmo a energia eterna que, simultaneamente, torna manifesta. As forças reunidas e projetadas no seu girar frenético e incessante são os poderes de evolução, preservação e dissolução do universo. A natureza e todas as suas criaturas são efeito dessa dança eterna.

Śiva–Natarāja, está representado numa bela série de bronzes do sul da Índia, que datam dos séculos X e XII d.C. ([Imagem1], [Imagem2])Os detalhes das imagens devem ser interpretados, de acordo com a tradição hindu, como uma complexa alegoria pictórica. Ver-se-á que a mão direita superior porta, para a marcação do ritmo, um pequeno tambor, cuja forma sugere uma ampulheta. Ele sugere o som, veículo da fala e portador da revelação, tradição, encantamento, magia e verdade divina. Além disso, na índia o som é associado ao éter, o primeiro dos cinco elementos. O éter é a manifestação primordial e mais sutilmente penetrante da Substância divina. Dele emanaram, durante a evolução do universo, todos os outros elementos: ar, fogo, água e terra. Portanto, som e éter, unidos, significam o primeiro e genuinamente verdadeiro momento da criação; são a energia produtiva do Absoluto, em sua prístina força cosmogenésica.

No lado oposto, a mão esquerda superior, cujos dedos formam uma meia-lua (ardhacandra-mudrā), mostra na palma uma língua de fogo. O logo é o elemento da destruição do mundo. No término do Kali-Yuga, o fogo aniquilará o corpo da criação, sendo ele próprio então apagado pelo oceano do vazio. O equilíbrio das mãos ilustra o equilíbrio criação-destruição no cósmico. Como exercício da crueldade dos opostos, o transcendental mostra-se através da máscara do mestre enigmático: criação incessante versus um insaciável apetite de destruição: som contra chama. O campo da terrível interação é o sítio onde ocorre a dança do universo, que o bailar divino torna esplêndido e horrendo.

O gesto de "não temas" (abhaya- mudrā), que confere proteção e paz, é feito pela segunda mão direita, enquanto a outra mão esquerda, na extremidade do braço transversal ao peito, aponta para baixo, para o pé es¬querdo erguido. Este pé significa a liberação; nele o devoto encontra refúgio e salvação. Deve ser venerado, para que seja alcançada a união com o Absoluto. O gesto da mão que o aponta imita a tromba distendida ou a "mão" do elefante (gaja-hasta-mudrā), lembrando-nos o filho de Śiva, Ganeśa, o Removedor de Obstáculos.

A divindade é representada dançando sobre o corpo prostrado de um anão-demônio. Este é Apasmāra Purusa, "Homem ou Demónio (purusa)", chamado "Esquecimento" ou "Imprudência (apasmāra)". Simboliza a cegueira da vida, a ignorância humana. Subjuga-o a obtenção da verdadeira sabedoria. Nesta está a libertação da servidão do mundo.

Um anel de chamas e luz (prabhā-mandala) emerge do deus e o circunda. Diz-se que significa os processos vitais do universo e de suas criaturas, e a natureza em sua dança, a mover-se como se a impulsionasse um deus a dançar dentro dela. Ao mesmo tempo, diz-se que significa a energia da sabedoria, a luz transcendental do conhecimento da verdade, cuja dança emana da personificação do todo. Outro significado alegórico atribuído ao hulo flamejante refere-se à sílaba sagrada AUM ou OM. Considera-se esta expressão mística (aye, amén), enraizada na sagrada linguagem védica de prece e encantamento, como uma expressão afirmativa da totalidade da criação. A é o estado do despertar da consciência, de envolta com seu mundo de experiência rudimentar. U é o estado de consciência onírica, que vivência as sutis formas do sonho. M é o estado de sono sem sonhos, a condição natural da consciência imóvel e indiferenciada, na qual toda a experiência é dissolvida numa não-experiência bem-aventurada, num todo de consciência potencial. O silêncio que se segue à pronunciação trinaria A, U e M, é a não-manifestação última, na qual se reflete a perfeita supraconsciência, que se funde com a essência pura e transcendental da realidade divina - Brahman é vivenciado como Ātman, o Self. Por isso, AUM, fundido com o silêncio circundante, é um som simbólico da totalidade da existência-consciência, e ao mesmo tempo, sua afirmação voluntária.

É provável que a origem do anel flamejante se refira ao aspecto destrutivo de Śiva -Rudra; mas a destruição, em Śiva, é, afinal, idêntica à liberação.

Śiva enquanto Dançarino Cósmico personifica e manifesta a energia eterna em suas "cinco atividades" (panca-kriya): (1) Criação (sristi) - o derramar ou expandir; (2) Preservação (sthiti) - a duração; (3) Destrui¬ção (samhāra) - o retorno ou reabsorção; (4) Encobrimento (tiro-bhāva) — o velar do verdadeiro ser por trás das vestes e máscaras das aparências, da indiferença, da manifestação de Māyā; (5) Graça (anugraha) - a aceitação do devoto, o reconhecimento do empenho religioso do iogue[sic], a concessão da paz através de uma manifestação reveladora. As três primeiras e as duas últimas são equivalentes, grupos cooperantes de antagonismos mútuos; todas são manifestadas pelo deus. Ele as revela de modo não apenas simultâneo, mais sequencial. São simbolizadas pelas posições das mãos e dos pés - sendo as três mãos superiores, criação, conservação e destruição, respectivamente; o pé plantado no Esquecimento é o "encobrimento" e o outro erguido, a Graça; a "mão do elefante" assinala a ligação entre as três e os dois, prometendo paz à alma que vivência a relação. Todas as cinco atividades são manifestadas em sequência, simultaneamente à pulsação de cada momento, através das transformações temporais.

Heinrich Zimmer, em 'Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da Índia', pág. 122 a 125.

+ Natarāja no Colar de Contos

Nenhum comentário:

Postar um comentário