20090125

A Humilhação de Indra


Certa vez, um monstro chamado Vrtra cumpriu a tarefa de represar (seu nome quer dizer "cercador") todas as águas do universo e houve, então, uma grande seca que durou milhares de anos. Bem, Indra, o Zeus do panteão hindu, finalmente teve uma idéia para solucionar o problema: "Por que não lançar um raio nesse sujeito e explodi-lo?" Então, Indra, que era aparentemente meio lerdo de raciocínio, pegou um raio e o atirou bem no meio de Vrtra, e... bum! Vrtra explode, a água flui novamente e a Terra e o universo têm sua sede saciada.

Bem, daí Indra pensa: "Como sou poderoso", e então vai até a montanha cósmica, Monte Meru, o Olimpo dos deuses hindus, e percebe que todos os palácios por lá estavam em decadência. "Bem, agora vou construir uma cidade inteiramente nova aqui - uma que seja merecedora da minha dignidade." Então, obtém o apoio de Vishvakarman, o artífice dos deuses, e conta-lhe seus planos.

Ele diz: "Olha, vamos começar a trabalhar aqui para construir essa cidade. Acho que poderíamos ter palácios aqui, torres acolá, flores de lótus aqui, etc., etc.".

Então, Vishvakarman começa as obras. Porém, toda vez que Indra volta para lá, ele aparece com novas ideias, melhores e mais grandiosas a respeito do palácio e Vishvakarman começa a pensar: "Meu Deus, ambos somos imortais, então esse negócio não vai terminar nunca. O que eu posso fazer?"

Então, decide procurar Brahma e queixar-se a ele, o assim chamado criador do mundo dos fenômenos. Brahma está sentado em um lótus (o trono dele é assim) e Brahma e o lótus crescem a partir do umbigo de Víshnu, que se acha flutuando no espaço cósmico, montado em uma grande serpente, chamada Ananta (que significa "eterno").

Portanto, eis a cena. Lá fora, na água, Vishnu dorme, e Brahma, está sentado no lótus. Vishvakarman entra, e, após muita reverência e embara­ço, diz: "Ouçam, estou em apuros". Daí, conta sua história a Brahma, que diz: "Tudo bem. Eu darei um jeito nisso".

Na manhã seguinte, o porteiro da entrada de um palácio que está sendo construído nota um jovem brâmane azul-escuro, cuja beleza chamou a atenção de muitas crianças em torno de si. O porteiro vai a Indra e lhe diz: "Acho que seria de bom grado convidar este belo jovem brâmane a conhe­cer o palácio e dar-lhe uma boa acolhida". Indra concorda que seria uma boa ideia e, assim, o jovem é convidado a entrar. Indra está sentado em seu trono e, após as cerimónias de boas-vindas, diz: "Bem, meu jovem. O que o traz ao palácio?"

Com urna voz semelhante ao som de um trovão no horizonte, o rapaz diz: "Ouvi dizer que você está construindo o maior palácio que um Indra já conseguiu e, agora, depois de conhecê-lo, posso dizer-lhe que, de fato, ne­nhum Indra construiu um palácio como este antes".

Confuso, Indra diz: "Indras anteriores a mim? Do que você está fa­lando?"

"Sim, Indras anteriores a você", diz o jovem. "Pare e pense, o lótus cresce do umbigo de Vishnu, então, desabrocha e nele se senta Brahma. Brahma abre os olhos e nasce um novo universo, governado por um Indra. Ele fecha os olhos. Abre-os novamente - outro universo. Fecha os olhos... e, durante 365 anos brâmicos, Brahma faz isso. Então o lótus murcha e, após uma eternidade, outro lótus desabrocha, aparece Brahma, abre os olhos, fecha os olhos. . . Indras, Indras e mais Indras.

Agora, vamos considerar cada galáxia do universo um lótus, todas com seu Brahma. Até poderia haver sábios em sua corte que se apresenta­riam como voluntários para contar as gotas d'água do oceano e os grãos de areia das praias do mundo. Mas quem contaria esses Brahmas, sem falar nos Indras?"

Enquanto ele falava, um formigueiro, marchando em colunas perfei­tas, aproximou-se pelo piso do palácio. O rapaz as olha e ri. Indra fica com a barba coçando, suas suíças ficam eriçadas, e ele diz: "Ora essa, do que você está rindo?"

O jovem diz: "Não me pergunte o por quê, a menos que queira ficar magoado".

Indra diz: "Pois eu pergunto".

O rapaz aponta para as fileiras de formigas e diz: "Todas, antigos Indras. Passaram por inumeráveis encarnações, subiram de posto nos es­calões do Céu, chegaram ao elevado trono de Indra e mataram o dragão Vrtra. Então, todos eles dizem: 'Como sou poderoso', e lá se vão eles".

Nesse momento, um velho iogue excêntrico, usando apenas uma tan­ga, entra segurando um guarda-chuva feito de folhas de bananeira. Vê-se em seu peito um pequeno tufo de cabelos, em forma de círculo e o jovem olha para ele e faz as perguntas que, na verdade, estão na mente de Indra: "Quem é você? Qual o seu nome? Onde você mora? Onde vive sua famí­lia? Onde é a sua casa?"

"Eu não tenho família, eu não tenho casa. A vida é curta. Este guarda-chuva é o suficiente para mim. Eu devoto minha vida a Vishnu. Quanto a esses cabelos, é curioso: toda vez que morre um Indra, cai um fio de cabe­lo. Metade deles já caiu. Logo, logo, todos vão cair. Por que construir uma casa?"

Bem, esses dois eram, na verdade, Vishnu e Shiva. Eles apareceram para a instrução de Indra e, já que ele os ouviu, foram-se embora. Bem, Indra sentiu-se totalmente arrasado, e quando Brhaspati, o sacerdote dos deuses, entra, ele diz: "Eu vou me tornar um iogue. Serei um devoto aos pés de Vishnu".

Então, aproxima-se de sua esposa, a grande rainha Indrani, e diz: "Querida, vou deixá-la. Vou entrar na floresta e me tornar um iogue. Vou parar com essa palhaçada toda a respeito de reinado na Terra e me conver­terei em um devoto aos pés de Vishnu".

Bem, ela o fita por um instante; então, vai procurar Brhaspati e conta-lhe o ocorrido: "Ele meteu na cabeça que vai embora para se tornar um iogue".

Daí, o sacerdote toma sua mão e a leva para se sentarem diante do trono de Indra, e lhe diz: "Você está no trono do universo e representa a virtude e o dever - dharma - e encarna o espírito divino em seu papel terreno. Já lhe escrevi um livro importante sobre a arte da política - como manter o Estado, como vencer guerras, etc. Agora vou lhe escrever um livro sobre a arte do amor, para que o outro aspecto de sua vida, com você e Indrani juntos, aqui, possa vir a ser uma relação do espírito divino que habita em todos nós. Qualquer um pode ser iogue; porém, o que acha de representar nesta vida terrena a imanência desse mistério da eternidade?"

Então, Indra foi poupado do problema de ter de abandonar tudo e tomar-se um iogue, poderia dizer o leitor. Na verdade, em seu íntimo, ele já sabia de tudo isso, da mesma forma que nós. Tudo o que temos a fazer é despertar para o fato de que somos uma manifestação do eterno.


Essa história, conhecida como "A Humilhação de Indra", acha-se no Brahmavaivarta Purana. Os Puranas são textos sagrados hindus que datam de aproximadamente 400 d.C. O aspecto fascinante a respeito da mi­tologia hindu é o fato de ela ter conseguido absorver o universo de que falamos hoje em dia, com seus vastos ciclos de vidas estelares, galáxias após galáxias e o nascimento e morte de universos. Isso reduz a força do momento presente.

O que importa todos os nossos problemas relacionados às bombas atômicas explodindo o universo? Já houve universos e universos antes, cada um deles explodido por uma bomba atómica. Portanto, agora você pode identificar a si mesmo no eterno que habita em você e em todas as coisas. Isso não significa que você queira assistir ao lançamento de bombas atômi­cas, mas, por outro lado, não perde seu tempo se preocupando a respeito.

Uma das grandes tentações de Buda foi a luxúria. A outra, o medo da morte, que, por sinal, é um belo tema para meditação. A vida lança à nossa volta essas tentações, essas perturbações mentais, e o problema consiste em encontrar o centro imutável dentro de nós. Então, pode-se sobreviver a qualquer coisa. O mito vai ajudá-lo a fazer isso. Não queremos dizer que você não deveria sair em passeatas de protesto contra a pesquisa atômica. Vá em frente, mas faça-o de maneira divertida. O universo é a diversão de Deus.

Joseph Campbell, em 'Mitos de Luz: Metáforas Orientais do eterno', pág. 22 a 25
Imagem: 'Lord Vishnu on Ananta', pintura Madhubani sobre papel por Dhirendra Jha.

Um comentário:

  1. Como sempre, a simplicidade simbólica e o conteúdo pragmático excelso do pensamento Vedanta, descortina a tênue existência da realidade como elemento central da razão existencial.
    Ha´p de haver algo mais profundo e que dê lógica e essência à toda a fenomênica.

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