20090215

Māyā


Narada é uma personagem recorrente dos contos hindus, que personifica o sábio, o devoto exemplar.

'Por sua prolongada austeridade e práticas devocionais, Vishnu voltou para ele sua graça. Apareceu ao santo em seu eremitério, concedendo-lhe a realização de um desejo.

— Mostrai-me o poder mágico de vossa Māyā - rogou Nārada, ao que o deus respondeu!

— Eu o farei. Segue-me.

Mas outra vez lhe pairou nos lábios de belas curvas o mesmo quase-sorriso.

Deixando a agradável sombra do bosque em que o eremita se abrigava, Vishnu conduziu-o por uma faixa de terra nua que reluzia como metal sob o sol que abrasava, impiedoso. Não demorou para que ambos ficassem muito sedentos. Viram, a alguma distancia, os tetos colmados de uma pequena aldeia fustigada pelo calor. Vishnu perguntou:

— Queres ir até lá buscar-me um pouco de água?

— Decerto, meu Senhor - respondeu o santo, correndo para o distante agrupamento de choupanas. O deus ficou a descansar à sombra de um penhasco, aguardando-lhe a volta.

Chegando ao povoado, Nārada bateu à primeira porta que encontrou. Veio abri-la uma bonita donzela e o devoto foi tocado por algo jamais sonhado: o encanto dos olhos da moça; assemelhavam-se aos do seu divino Senhor e amigo. Estático, pasmado, esqueceu o que viera fazer. Doce e ingénua, ela deu-lhe as boas-vindas. Sua voz, como um laço de ouro, rodeou-lhe o pescoço. Movendo-se como num sonho entrou na casa.

A parentela tratou-o com muito respeito, embora sem o menor vestígio de timidez. Receberam-no com as honras devidas a um santo, mas não como a um estranho; mais parecia ser, o recém-chegado, um venerável conhecido de longa data, há muito ausente. Nārada permaneceu em companhia deles, impressionado com o acolhimento caloroso e digno; sentia-se como em sua própria casa. Ninguém perguntou o motivo de sua visita; era como se pertencesse à família desde tempos imemoriais. Transcorrido algum tempo, pediu ao pai da moça permissão para casar-se com ela, o que não surpreendeu ninguém. Tornou-se membro da casa e compartilhou os deveres milenares e os prazeres simples de um lar camponês.

Doze anos se passaram; tinha três filhos. Morrendo-lhe o sogro, tornou-se o chefe da família, herdando e administrando os bens, cuidando do gado e cultivando as terras. No décimo segundo ano a estação das chuvas foi extraordinariamente violenta: encheram-se os rios, torrentes desceram montanhas abaixo e uma enchente inundou, de repente, o pequeno povoado. Durante a noite, as choupanas de palha e o gado foram arrastados e todos precisaram pôr-se em fuga.

Uma das mãos amparando a esposa, levando à outra dois dos filhos e conduzindo sobre os ombros o terceiro, o menor, Nārada partiu a toda pressa.

Abrindo caminho através da mais completa escuridão, açoitado pela chuva, caminhava a muito custo sobre a lama escorregadia, cambaleando através do redemoinho das águas. A carga era maior do que podia suportar e a correnteza arrastava-o, envolvendo-lhe as pernas com muita força. Nārada tropeçou e o filho que levava aos ombros escorregou, tragado pela noite uivante. Com um grito de desespero, desprendeu-se dos filhos maiores para agarrá-lo, mas era tarde demais. Enquanto isso, a torrente brutal carregou os outros dois e, antes que se apercebesse da extensão do desastre, arrancou-o da esposa, arrastandoo corrente abaixo como a um toro inerte. As águas atiraram-no inconsciente numa praia, sobre uma pequena rocha. Abriu os olhos, ao voltar-lhe a consciência; a sua frente, viu um vasto lençol de água lamacenta. Chorar era o que podia fazer. Chorou.

— Filho! - aquela voz, que lhe soou familiar, quase lhe fez parar o coração.

— Onde está a água que foste buscar para mim? Espero por ela há mais de meia hora.

Nārada voltou-se. Em vez de água o que viu foi um deserto a rebrilhar ao sol do meio-dia. Perto, as suas costas, estava o deus. Ainda sorriam, sem compaixão, as curvas da boca fascinante, que se abriu para a pergunta amável:

— Compreendes agora o segredo de minha Māyā?'


Contada por Heinrich Zimmer, segundo a versão de Ramakrishna, em 'Mitos e Símblos na Arte e Civilização da Índia' (pág. 33 e 34)

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